Salve-se Quem Puder #17 – A Vaca

Um cartunista, um publicitário, um escritor e um cozinheiro entram em um Fusca.

É uma manhã de sol e céu azul, mas fria, muito fria. Tão fria que diante da sua frieza os transeuntes sentem na pele a falta de empatia e compaixão daquele dia. Mesmo assim, o grupo acredita que é um bom dia para viajar pelo interior de Minas Gerais. 

O Fusca 68 bege arena reluz ao sol do dia emocionalmente distante, no aconchegante interior vermelho turim, os quatro amigos estão confortáveis em seus assentos de couro. Deslizando pelas estradas de terra batida o Fusca exibe, em seu vidro traseiro, adesivos de personagens do Henfil, capivaras, frases “A criatividade é alma do negócio” e “A cada página uma nova aventura” e alguns queijos e pães de queijo. 

O Cartunista, no banco do passageiro, rabisca em seu caderno os elementos da paisagem como personagens antropomorfizados que atacam um fusca. O publicitário dirige e canta um jingle de improviso, sobre como a qualidade de vida do interior é importante para uma marca de ultraprocessados. No banco de trás o escritor registra em seu telefone inteligente a angústia e a agonia de uma viagem interminável pelas entranhas de sua alma e sobre a dor, a dor de segurar o xixi por muito tempo. Ao seu lado o cozinheiro planeja todos os temperos caseiros e pratos do interior que poderia gourmetizar.

O possante desbrava as estradas de terra e, durante algumas horas, se torna um ambiente criativo e produtivo. O local de nascimento de ideias, pensamentos, conceitos e receitas. Um espaço que oferece propósito e importância para aquelas pessoas. A produção é tão intensa e imersiva que três dos quatro passageiros, quase não notam uma força súbita que arremessa todos os pertences para frente. Eles próprios só não voam pelo cuidado dolorido de seus cintos de segurança. O outro passageiro grita aterrorizado enquanto pisa violentamente no pedal responsável pela interrupção abrupta do veículo. Agressivamente a tranquilidade do grupo é interrompida e o Fusca para.

Uma Vaca está plantada na estrada, imóvel, serena e tranquila. 

Após alguns segundos dedicados a recuperar o fôlego, colocar seus pertences no lugar e tentar compreender o que diabos aconteceu, os quatro descem do Fusca. A Vaca olha para o horizonte ruminando capim e nem mesmo se dá ao trabalho de notar a presença daqueles profissionais. Cuidadosamente o grupo inspeciona o cenário, analisa  a situação, especula as possibilidades e chega a uma conclusão. Não dá pra passar de carro e a Vaca não vai sair dali tão cedo. Sem opções, cada um deles tenta persuadir o bovino a mudar de lugar. 

O cartunista saca seu pincel e, com a certeza de que o humor e a imaginação são as melhores armas, rabisca em seu caderno. Ele mostra para a Vaca um desenho cartunesco dela mesma em uma pose heroica impedindo um fusca velho e detonado de atravessar uma rua. Ela morde a folha e passa a mastigá-la. O ilustrador não desiste e rascunha uma elaborada caricatura do animal em uma narrativa visual que o coloca como o King Kong pendurado em uma árvore atirando fuscas para todos os lados. O bovino mastiga o novo desenho com a mesma indiferença. Com a sensação de fracasso e a certeza de que as vacas não sabem apreciar um bom quadrinho, o cartunista cede a vez ao publicitário.  

Confiante na força do convencimento e no poder da comunicação de massa, o publicitário se aproxima do empecilho e começa a persuadi-lo com promessas da “melhor vida rural”. Olhando fixo nos olhos da Vaca, o publicitário afirma: Essa é uma oportunidade única. O animal muge e continua a ruminar os desenhos do cartunista. O comunicólogo passa a descrever todas as maravilhas da vida rural. Pastos verdes! Sombra refrescante e uma lagoa pra relaxar. A barreira no meio da estrada balança o rabo e ignora as promessas de uma vida melhor. A alegria está logo ali! Uma estrada vazia é um pasto verde de oportunidades! Olhe e explore ao redor… Ele desiste. O publicitário humilhado pela falta de interesse percebe que talvez vacas sejam um público difícil de se persuadir. 

O cozinheiro nem se preocupa, ele sabe que a melhor maneira de mover a Vaca é pelo estômago. O chef dá uma volta pela região e retorna com frutas, ervas, cogumelos e capim. Acende uma pequena fogueira, pega sua frigideira de viagem, abre sua pochete de temperos naturais e começa a cozinhar. Prepara uma entrada de capim selvagem com frutas vermelhas ao suco de limão. O animal com a boca toda suja de nanquim, parece preferir os desenhos do cartunista. Sem tempo para sofrer a derrota um delicioso caldo picante de capim funghi ao alho surge na frente da besta que prefere lamber o nanquim respingado nos beiços. O cozinheiro respira fundo e usa toda sua força criativa para oferecer a sobremesa: Banana assada na brasa com caramelo de capim salgado e pitadas de canela. O bovino não se afeta. O cozinheiro chora e afirma que as vacas não sabem usufruir de uma boa experiência gastronômica.

Calma lá! Não existe ser no mundo que uma boa narrativa não possa cativar. Entra em cena o escritor que senta próximo a fogueira e inicia a contação de histórias, algo sobre novas terras, arte erudita, dialetos mal formulados e comidas extravagantes. A Vaca deita. O contador não desanima e continua suas formulações, é preciso se movimentar para conhecer coisas novas, quem sabe os lugares mágicos que podemos conhecer? O animal pisca algumas vezes de forma longa e demorada. Eis que emoção e drama entram na história, a mudança é uma jornada que toca a alma de quem se mostra aberta a apreciá-la. A muralha intransponível dorme. O escritor faz uma nota mental, é possível que as vacas não sejam o público de minhas histórias.  

Os quatro olham para a Vaca no meio da estrada. Exaustos, percebem que cada habilidade sozinha é poderosa, mas insuficiente para mover o bovino. Então, decidem combinar seus talentos. É necessário o humor, a criatividade, a técnica, o estilo, tudo harmonizado e bem temperado.  

O escritor cochicha um enredo mirabolante para o cartunista que começa a rabiscar freneticamente, o cozinheiro, atento, percebe o que está acontecendo e prepara um papel de capim gourmet aromático para o desenho final. Quando tudo está pronto, o publicitário solta a voz, com emoção, promovendo “A experiência gastronômica de uma vida”. Surpreendentemente, a Vaca se move! Devagar ela caminha na direção daquele delicioso produto de comunicação. O grupo, segurando a peça, a atrai até a lateral da estrada. Finalmente, o caminho está livre. A verdadeira força é a capacidade de mesclar habilidades.

De volta ao Fusca, refletem sobre o potencial de um profissional que domine todas as técnicas. A Vaca parecia um obstáculo intransponível, mas foi vencido. O veículo acelera e o grupo segue a viagem. Depois de alguns minutos, o Fusca dá um engasgo e para novamente. A gasolina acabou.

O cartunista olha para os amigos, Será que a gente convence a Vaca a dar carona?

Obs. O Sunça é cartunista, escritor, publicitário e cozinheiro. Ah! Ele desenha vacas. 


Sunça é cartunista, escritor e publicitário. 

Às vezes certo, às vezes errado, nunca com razão.


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